Lendas míticas (segundo João Vicente Martins)

Lenda mítico-histórica e oral do grupo Lunda-Tchokwe sobre a sua ascendência divina e criação do Universo

Segundo a história tradicional e oral, que o autor ouviu da boca dos mais idosos e categorizados chefes destas duas etnias, tanto os Lundas como os Tutchokwe e todos os povos negros, descenderiam dos Bungus, e estes directamente do Nzambi (Deus supremo da mitologia Tchokwe).

Eis, pois, tal como nos foi contada, a história da criação do Universo e a ascendência divina destes povos.

O Nzambi, a quem também chamam Ndala Karitanga (Deus que se criou a si próprio) e Sá Kalunga (Senhor infinitamente grande, Deus supremo e infinito), depois de ter criado o Mundo e tudo quanto nele existe, criou uma mulher para que fosse sua esposa e para que, por seu intermédio pudesse ter descendência humana, a fim de que esta povoasse a Terra e dominasse todos os animais selvagens, por ele também criados. Disse então sua esposa que passaria a chamar-se Ná Kalunga, em virtude de a filha que iria dar à luz, se chamar Kalunga.

Com efeito, tal como o Nzambi tinha anunciado, passados nove meses nasceu sua filha Kalunga. Esta foi crescendo como qualquer criança normal, junto dos seus divinos pais, na tchehunda tcha Nzambi (aldeia de Deus).

Logo que sua filha atingiu a puberdade, o Nzambi, seu pai, informou Ná Kalunga, sua esposa, que tencionava fazer uma caçada, durante os três meses da época seca e que, para não ir sozinho, levaria sua filha com ele.

Esta resolução não agradou à divina esposa que tentou opôr-se a que sua filha o acompanhasse. Porém, o Nzambi lembrou-lhe que ela tinha sido por ele criada para lhe obedecer, visto que, além de seu marido, era também seu Deus.

Contrariada, mas impotente para obrigar o esposo a desistir do seu intento, limitou-se a deixar ir a filha com o pai, enquanto ela ficou a chorar amargamente.
Logo que chegaram ao local escolhido para a caçada, o Nzambi, instantaneamente, construiu uma palhota, na qual instalou uma só cama.

Ao ver um único leito, a filha do Nzambi recusou-se a dormir com seu pai e saiu a chorar da cabana.

Ao ver a recusa da filha e não podendo convencê-la doutra forma, disse-lhe que se não fosse imediatamente para junto dele, seria devorada pelas feras que infestavam a floresta.
Transida de medo pelo que acabava de ouvir, Kalunga entrou novamente na cabana, deitou-se junto de seu pai e com ele dormiu não só naquela noite mas durante todo o tempo que durou a caçada.


Finda esta, regressaram a casa e a Ná Kalunga, tal como tinha previsto, verificou que a filha estava grávida do próprio pai. Enraivecida pelo ciúme e pelo desgosto, no meio das maiores blasfémias, enforcou-se numa árvore, perante os olhares atónitos da filha e do marido, que nada fizeram para evitar o suicídio.

Desgostoso pela atitude da mulher, que não quis compreender os seus desígnios para povoar o Mundo que ele tinha criado, mostrando ser indigna de continuar a ser esposa daquele que lhe tinha dado o ser, em vez de lhe dar vida, novamente amaldiçoou-a e transformou-a num espírito maligno, a que deu o nome de Mujimo (designa ventre mas, neste caso, significa o espírito da primeira mãe que existiu na Terra).

A partir dessa altura, o Nzambi passou então a viver maritalmente com sua filha Kalunga, a qual, depois da morte da mãe, passou a chamar-se também Ndala Karitanga e a ser a segunda divindade.

Algum tempo depois da morte de sua mãe, durante um sonho, teve uma visão que a deixou apavorada. Viu a mãe com a cabeça apoiada nas mãos, a olhá-la com rancor e a insultá-la, mordida pelo ciúme que ainda a devorava, enquanto ela, envergonhada, lhe pedia desculpa e lhe dizia que de nada era culpada, visto que seu pai a tal a tinha obrigado. No meio desta aflição acordou e contou ao pai o seu pesadelo. Este sossegou-a, dizendo-lhe que nada receasse daquela que tinha sido sua mãe e que agora era espírito mau, pois que ela nenhum mal lhe poderia fazer, mas apenas lhe pedia comida. Portanto, disse ele, vamos dar-lha.

Levantaram-se ambos e ele fez um pequenino montão de terra, junto da porta da casa, simulando uma sepultura. Disse, então, à filha que fosse buscar carne e outra comida e a pusesse sobre aquela sepultura, proferindo, ao mesmo tempo, as seguintes palavras:

Mama ngu n’ezanga ua-ku-ku-rila. Halapuila kanda uiza kuri yami nawa; ny ngu-na-ku mono nawa, ngu n’eza ny ku ku cheha (minha mãe, acabo de vir chorar-te; agora não voltes ter comigo outra vez porque, se volto a ver-te, venho matar-te).

Chegado que foi o tempo, Kalunga deu à luz um filho ao qual seu pai-avô deu, também, o nome de Ndala Karitanga, passando este a ser a terceira divindade.
Logo que seu filho-neto cresceu e atingiu a adolescência, o Nzambi ordenou-lhe que casasse com sua mãe Kalunga, para que esta concebesse dele muitos filhos, de ambos os sexos, a fim de povoarem a Terra e dominarem todos os animais.

Cumprindo as ordens do Nzambi, sua filha e seu filho-neto casaram e tiveram um filho e uma filha. Quando estes chegaram à maioridade, o Nzambi ordenou, então, que o primeiro casasse com o pai, dizendo que já não se justificava a primeira união que ele tinha ordenado, informando-os ainda que, depois daquelas uniões, as seguintes se fizessem só entre primos cruzados.

Por fim, depois de lhes ter ensinado tudo o que deveriam fazer, para que a sua descendência crescesse e se multiplicasse, para que lutasse contra as doenças e os feitiços que um dos seus descendentes, do sexo feminino, viria a possuir, porque ele lhos legara, o Nzambi despediu-se de todos. Chamando, depois, o seu cão, que sempre o acompanhava, dirigiu-se para a tchana tcha Mweu (planalto do Mweu) e dali subiu para o espaço, levando consigo o cão.

Naquela altura, as rochas estavam moles, por terem sido formadas há pouco tempo. Ainda hoje se podem observar as pegadas esculpidas, numa rocha ali existente, especialmente do pé direito do Nzambi, assim como da pata dianteira do seu cão. Estas pegadas existem também em diversas outras rochas por toda a África, incluindo Angola.



Foi, pois, ali que o Nzambi subiu à tchehunda tcha Nzambi (aldeia de Deus), ou céu como nós lhe chamamos, onde se conserva, através dos séculos, para recompensar os bons e castigar os maus.

À pergunta que fizemos a diferentes tutchokwe, como é e quem foi que criou o Nzambi, eles responderam, apenas que, sendo ele Ndala Karitanga, se deve ter criado a si mesmo e que tudo o mais é mistério que jamais alguém conseguiu ou conseguirá desvendar.

Além desta lenda, existe uma outra sobre a criação do Homem e do povoamento da Terra, que todos os tutchokwe de certa idade, como depositários da tradição oral, conheciam naquela altura e nós tivemos a sorte de recolher. Vejamos, pois, o que ela diz:

‘’Nzambi, depois de ter criado o Mundo, criou também duas pessoas, a quem chamou Sá Mutfu e Ná Mutfu. A primeira criou-a com o sexo masculino; a segunda não tinha sexo, o que a entristecia.

O Nzambi criou-as e deixou-as no monte a que os lundas chamam Ilundu Nyi Senga e a que os tutchokwe dão o nome de Lundu Nyi Senga, situado, segundo afirmam, entre Kapanga e Sandoa, na região de Katanga. Ali construíram a sua casa as duas recém-criadas pessoas, junto da nascente do ribeiro Lwila, afluente do rio Lulua. Ao deixá-las, antes de subir para o espaço acompanhado do seu cão, onde ainda hoje se encontra, o Nzambi entregou ao Sá Mutfu um cão, uma enorme cabaça e um embrulho, dizendo-lhe:

- Aqui tens um cão que será o teu mais fiel companheiro e caçará para ti. Nesta cabaça estão todos os animais, de tamanho minúsculo, necessários ao povoamento da Terra, mas só deves abri-la quando chegares perto do Kalunga ká meya (mar), para que eles saiam em boa ordem, cresçam, se multipliquem e te obedeçam. Depois de teres feito isto, no regresso, lavas o conteúdo do embrulho na água dos dois primeiros ribeiros que atravessares; só depois poderás entregá-lo à tua companheira Ná Mutfu, que o colocará no Mumelu (região púdica), a fim de que ela possa procriar, isto é, ter muitos filhos e filhas e ambos possais multiplicar a vossa espécie.

Cumprindo as ordens que recebera do Nzambi, o Sá Mutfu, acompanhado do seu cão, dirigiu-se para o Ocidente, em direcção ao mar, levando consigo a grande cabaça e o embrulho, enquanto Ná Mutfu ficou em casa, pois não se sentia com forças para o acompanhar.

O Sá Mutfu andou, andou, até que vendo o rio Cassai e julgando tratar-se do mar que o Nzambi lhe tinha falado, destapou a cabaça e todos os animais saíram num instante. Quando o Sá Mutfu reparou que se tinha enganado e que aquilo era um rio e não o mar, chamou pelos animais, para que voltassem a entrar na cabaça, a fim de os levar para junto do mar. Chamou, chamou, mas nenhum deles regressou à cabaça.
Pela mesma razão, o primitivo nome do rio Cassai era ‘’Karum’’, vocábulo lunda que significa mar.

Aborrecido e triste por se ter enganado, e os animais lhe não terem obedecido, regressou a casa, seguido do seu cão. O aborrecimento e a tristeza eram tais que se esqueceu de lavar o conteúdo do embrulho na água dos dois primeiros ribeiros que atravessou, como o Nzambi lhe tinha indicado. Por tal motivo, quando já estava perto de casa, sentindo que o embrulho exalava um cheiro esquisito, deitou-o fora.
Quando chegou a casa e contou a Ná Mutfu o que lhe tinha sucedido, esta ficou indignada por ele ter aberto a cabaça antes de ter visto o mar.


E o embrulho que o Nzambi te deu, que lhe fizeste ? – Interrogou a Ná Mutfu.
Deitei-o fora porque começou a cheirar mal.
Ouvindo isto, a Ná Mutfu mais aborrecida ficou e disse-lhe:
Volta imediatamente atrás com o cão, a fim de recuperares o embrulho que me pertence e não me apareças aqui sem ele.

Cumprindo a vontade da sua companheira, o Sá Mutfu foi com o cão, que encontrou o embrulho, à beira do ribeiro Lwila, entregando-o ao dono.
Satisfeito, o Sá Mutfu regressou a casa e entregou o malcheiroso embrulho a Ná Mutfu. Esta desmanchou-o e, tirando o seu conteúdo, colocou-o na região púdica, onde ficou implantado, transformando-se, assim, naquele instante, a Ná Mutfu em mulher.

Reparando, então, que eram de sexos diferentes, a ri-mbata (acasalaram-se); em lunda, atejane.

Daquela união nasceu uma filha de nome Ná Konda. Esta, por sua vez, concebeu de seu pai, Sá Mutfu, cinco filhos e três filhas. Aos filhos deram os nomes, por ordem de nascimento, de Kanongwena, Naweji, Sá Kambundji, Mwazanza e Tchinyama; as filhas chamavam-se Kasai, Lweji e Tembo.

Do Kanongwena descenderiam os povos Baluba, Baquete, Bena-mai, Lulua e outros de língua semelhante; de Sá Kambundji, os Xinges e os Minungos; de Tchinyama os Luenas. Os progenitores dos Lundas teriam sido Lweji, Naweji, e Mwazanza; dos Tutchokwe, Kasai e Tembo.

O rio Cassai teria tomado este nome, depois de nele ter perecido a mãe dos Tutchokwe ou Kasai. Esta, segundo a lenda, tendo-se ausentado de Lundu nyi Senga, quando regressou, disseram-lhe que seus filhos tinham seguido para o lado onde o Sol se esconde.
Ouvindo isto, ficou desolada e foi atrás dos filhos. Ao chegar junto do rio Cassai, julgando que eles o tinham atravessado, lançou-se à água, a fim de o atravessar também, e lá morreu afogada. Dali em diante, o ‘’Karum’’ passou a chamar-se Cassai.


Lenda mítico-histórica Tchianza Ngombe e de Mâma Nyaweji


Segundo diz esta lenda, no princípio existia só o Tchianza Ngombe ou Yanvua Ngombo e Mâma Nyaweji, a grande serpente que criou o mundo e tudo quanto nele existe, incluindo a ‘’meia’’ (água) e a ‘’kahia’’ (fogo).

Aparece depois o Sá Kasanji ‘’Katanga Watangile atfu eswe nyi moko nyi molo, Yie ma tala atfu eswe, bwalo atfu katu matalie’’ (Katanga criou todas as pessoas, os braços e as pernas. Ele olha para todas as pessoas, mas elas não olham para ele, ninguém o vê).

Tchianza Ngombe casou com o ‘’Nzaji (trovão) nyi aya nenye mwilu’’ e foi com ele para cima, para o espaço, para o céu, onde permanece com seus filhos.

Também há a crença, entre alguns Tutchokwe, que o Sol é o fogo dos raios e faíscas e que na sua marcha diária aparece, nasce ‘’Nu Ngangela’’ (Oriente) de manhã e ‘’mafwa (morre) Ku Luanda’’ (Ocidente). Com o ‘’Kakweje’’ (Lua) sucede o mesmo. ‘’Afwa’’ (morre) ‘’nyi atetama nawa’’ (e aparece, nasce outra vez na Lua Nova).

Crêem que a Lua é a companheira da noite, do mal, da doença e da morte, enquanto o Sol é a clara luz do dia, o bem, a saúde e a vida.

Tal como os antigos egípcios, também os Tutchokwe consideram o Oriente como a vida, o bem e tudo quanto há de bom, enquanto o poente é considerado como o lado onde morre o Sol e, por isso, de onde vem a doença, a morte e tudo quanto é mau.
Também crêem que as ‘’tongonoche’’ (estrelas) seriam pontos de fogo do ‘’Nzaji’’.

Seriam elas quem manda a ‘’nvula’’ (chuva). Esta seria a urina das estrelas que faz crescer ‘’mitondo mwesue’’ (todas as plantas).

Quanto a Nyaweji ou Tcianza Ngombe ‘’uri mu iche ria mavo’’ (está por baixo da terra) é o dono e senhor da terra e de todas as coisas que nela existem, incluindo todas as águas dos rios, lagos e mares.

Do ventre de Tchianza Ngombe nasceram duas pessoas irmãs: Sá Mutfu e Ná Mutfu. Como o primeiro era homem e a segunda era mulher, casaram-se. Desta união nasceram duas crianças: Kandi Ya Matele e Yala. Estes, por sua vez, casaram também.

Deste casamento nasceram Mwako e Kaweji, que também casaram e tiveram dois filhos: Yala Mwako e kondi, que também casaram e tiveram um rapaz chamado Mwako Ya Kondi, e outro de nome Yala Mwako, ou seja, o nome do seu ‘’Kaka’’ (avô). Este último foi o pai de Tchinguli ou Tchinguri Mbangala, de Tchinyama mukwa Luena e de Lweji Ya Kondi.

Yala Mwako era o chefe de todos os outros chefes Tumbungo (plural de Bungo, Mbungo ou Kambungo), tal como sucedia em quase toda a África ao Sul do Sahara e na África Oriental, incluindo a Etiópia, antes da queda da monarquia, onde o Négus era o imperador ou rei dos rás, isto é, chefe de todos os chefes de aldeia, clã ou etnia, o senhor dos senhores. Era uma espécie de feudalismo, como sucedia no Império Lunda, onde também estava consagrado o poder local.

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